sábado, 25 de janeiro de 2014

Resenha 18: "Ela", de Spike Jonze

Joaquin Phoenix em Ela. © Warner Bros.
Her, EUA, 2013. Romance/Sci-fi/Dramédia. 126 minutos. Direção: Spike Jonze. Escrito por: Spike Jonze. Elenco: Joaquin Phoenix, Amy Adams, Rooney Mara, Olivia Wilde, Chris Pratt, Matt Letscher, Laura Kai Chen, Portia Doubleday, Scarlett Johansson. Classificação indicativa: A definir. R nos EUA.

Nota: eu originalmente não ia escrever resenhas individuais para nenhum dos filmes indicados ao Oscar — eles seriam cobertos em um especial futuro que utilizaria a premiação como forma de relembrar o ano que se passou — mas vou fazer uma exceção aqui. O especial ainda será redigido, em breve.

A certa altura de Ela, Spike Jonze roda uma cena de sexo particularmente climática. Trata-se da "consumação" do relacionamento cuidadosamente construído entre os protagonistas Theodore e Samantha, e é sem dúvida uma das cenas mais marcantes de um filme repleto destas, tanto pelo intimismo destemido com que a sequência se desenrola quanto pelo diálogo antológico que os dois personagens compartilham e que coloca em evidência o significado daquele momento para ambos. É incomum para quaisquer filmes representar o ato sexual de forma tão simultaneamente natural e poética, mas Jonze, juntamente com Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson, mostra-se à altura da tarefa, o que resulta em alguns minutos infinitamente mais envolventes e impactantes do que uma infinidade de cenas que lançam mão da nudez e do sexo crus e óbvios tencionando impressionar pelo caminho mais fácil. Eis, porém, o detalhe que diferencia esta de outras boas cenas de sexo: imediatamente antes de a ação tornar-se explícita, Jonze insere um fade out que centraliza a força da cena apenas no som, e limita todo o seu conteúdo visual à imaginação do público. Nada mais apropriado, considerando que Samantha é um sistema operacional com presença física nula.

Tal é o mote do roteiro, que se passa num futuro impreciso mas próximo: em meio aos edifícios pós-modernos de uma Los Angeles apenas um tantinho futurista, o solitário Theodore Twombly passa seus dias escrevendo cartas profundamente emotivas por encomenda, ouvindo as atualizações de um robótico assistente pessoal, jogando videogame, relembrando momentos de seu casamento recém-desmoronado e vagando por aí enfiado em calças de cintura alta que parecem ser a moda vigente. Sua vida só começa a se desvencilhar da sombra do amor de infância azedado — as razões desse azedamento chegam até nós de pouco em pouco, em flashbacks de lirismo excepcional — quando ele decide comprar o OS1, anunciado como o primeiro sistema operacional com inteligência artificial. E, por maior que seja a tentação de descrever a invenção como uma Siri do futuro, essa seria uma comparação infundada, pois fica claro desde as primeiras palavras trocadas entre Theodore e seu OS, autobatizado Samantha, que esta última é uma criatura bem mais interessante do que um simples assistente.

A diferença é registrada brilhantemente assim que Samantha solta seu primeiro "Oi", em que a voz de Johansson exibe uma pequena falha tonal tipicamente humana, e continua sendo desenvolvida conforme ela e Theodore se tornam mais próximos: entre updates simpáticos e perguntas algo intromissoras, Samantha, em aprendizado empírico constante, prova ser capaz de discorrer com personalidade sobre questões filosóficas e emocionais — as quais vêm em peso, dada a situação aflitiva de Theodore e seu embate psicológico com os documentos de divórcio —, e até mesmo de fazer rir com piadas inesperadas. Fragilizado e precisando de um amigo como está — sua colega mais próxima, Aimee, vive distraída pelo trabalho e pelo marido —, Theodore deixa-se tornar amigo de Samantha, e mais tarde algo mais que isso, culminando na referida cena de sexo, a qual, esclarecendo, ocorre antes da metade da projeção. Montado o palco, o filme se lança em uma exploração sagaz, mas sempre delicada, de seu conceito maluco, apoiada no relacionamento central mas aberta a incursões de personagens secundários — e ver as diferentes reações à notícia de que Theodore está namorando uma OS constitui uma experiência emocionalmente e intelectualmente estimulante.

O mesmo pode ser dito de todo o filme, na verdade. Ciente do potencial temático da ideia, Jonze, em seu primeiro roteiro 100% original (seus trabalhos anteriores haviam partido de roteiros de Charlie Kaufman ou do livro Onde Vivem os Monstros), não falha em abrir a trama em discussões profundas e multifacetadas sobre o que se subentende naquele amor sci-fi, o que ele nos diz sobre os caminhos dessa sociedade cada vez mais tech (algo que é potencializado significativamente pela hábil idealização que Jonze e seus designers fazem do futuro não-tão-distante) — pra não falar das questões metafísicas e existenciais inerentes ao relacionamento central e ao crescimento de Samantha como personagem, as quais chegam a ter papel fundamental no conflito principal. O grande mérito de Jonze, no entanto, está em não transformar sua história numa fábula preta-e-branca, e sim se dar ao trabalho de envolver emocionalmente o espectador. Assim, mais do que enxergar Samantha como uma metáfora para isso ou aquilo, somos levados a vê-la pelo que ela é de fato: um ser complexo, único, falho e dotado de sentimentos, que merece tanta consideração quanto qualquer ser humano com um corpo. É por essas e outras que, antes de ser qualquer outra coisa (e é muitas), Ela é uma história de amor, ao mesmo tempo absurdamente tocante e aplaudivelmente inteligente ao retratar os percalços de um romance repleto destes por natureza — e, ao enfocá-lo, Jonze consegue ainda se debruçar sobre perguntas difíceis acerca da natureza do amor romântico. Falamos, afinal, de um relacionamento não-convencional se alguma vez já houve um.

Isso tudo já seria suficiente para colocar qualquer produção entre as melhores do ano. Mas eis aqui o que torna Ela um grande filme: em vez de se distanciar do enredo e conduzi-lo sobriamente como em suas colaborações com Kaufman, Jonze permite a si mesmo imbuir sua obra de poesia. Na fotografia saturada e quente, nos monólogos confessionais, nos parênteses sábios, nos acordes suntuosos e sensíveis da trilha do Arcade Fire, nas ocorrências pontuais de ironia e humor, Ela voa alto, capaz como nenhum outro filme dessa década até agora de fazer um registro maravilhosamente humano de um zeitgeist peculiar. Essa doce intoxicação sensorial e mental é, inclusive, um passo importante para Jonze, que estabelece uma marca pessoal praticamente única em Hollywood graças a seu tato para a beleza crua das coisas. O elenco, é claro, contribui fabulosamente para essa aura de ukulele audiovisual: privada de maquiagem, Amy Adams entrega uma Aimee frágil e compreensível que faz um excelente contraponto humano a Theodore, enquanto Rooney Mara é hábil na composição de uma ex-mulher geniosa e complicada, alternando entre o contexto etéreo das memórias do protagonista e a dureza do pós-término com proficiência. Fechando o elenco secundário, Chris Pratt demonstra mais uma vez ter um grande talento para alívio cômico, revelando-se ainda competente nos momentos mais graves da participação de seu personagem.

Isso tudo, lógico, pra não falar do casal de protagonistas. Se o desafio ao qual se submete Johansson é grande o suficiente, munida apenas de sua voz para transmitir uma infinidade de ideias, pensamentos e estados de espírito, o de Phoenix é ainda maior: carregando todas as cenas, com a câmera a centímetros do rosto em boa parte delas, ele dá conta não só de construir um homem comovente em suas múltiplas neuroses e dúvidas, como de estabelecer uma química sublime com uma voz praticamente imaterial. Muito graças aos dois atores, Theodore e Samantha se mostram personagens memoráveis, nos quais o espectador pode ancorar-se com gosto conforme navega pelo admirável mundo novo imaginado por Jonze. O futuro de Jonze, diga-se de passagem, é palpável, rico em sua enganosa simplicidade, assustador em alguns lugares e encantador em outros, habitado por homens e mulheres invariavelmente interessantes em suas opiniões variadas sobre questões pertinentes àquele tempo e, em termos, ao nosso; poucas vezes na memória recente um cineasta foi tão habilidoso em imergir seu público em uma realidade fictícia — muito porque o mundo alguns anos mais velho que ele constrói não é tão fictício assim. Isso, aliás, é parte do que torna a ficção científica naturalista aqui observada tão instigante: Jonze acerta em cheio todas as suas observações discretas sobre os rumos que estamos tomando, imaginando desde games simuladores de maternidade até uma espécie de Chatroulette oral para tarados(as) sem sono, em passagens que inspiram divertimento e temor, frequentemente ao mesmo tempo. Trata-se do trabalho de um verdadeiro visionário, sem a menor sombra de dúvida — só mesmo um visionário, afinal de contas, para nos fazer acompanhar com o coração na mão a história do amor entre um escritor solitário e um sistema operacional.


Classificação final: