segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Resenha 17: "Jogos Vorazes: Em Chamas", de Francis Lawrence

Jennifer Lawrence e Josh Hutcherson em Jogos Vorazes: Em Chamas. © Lionsgate.
The Hunger Games: Catching Fire, EUA, 2013. Sci-fi/Drama/Aventura. 146 minutos. Direção: Francis Lawrence. Escrito por: Simon Beaufoy e Michael deBruyn. Elenco: Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Liam Hemsworth, Woody Harrelson, Elizabeth Banks, Lenny Kravitz, Stanley Tucci, Philip Seymour Hoffman, Sam Claflin, Jena Malone, Lynn Cohen, Jeffrey Wright, Amanda Plummer, Willow Shields, Paula Malcomson, Donald Sutherland. Classificação indicativa: 14 anos.

Eu gostei bastante do primeiro Jogos Vorazes: embora fosse um filme falho em mais de um aspecto, era uma bem-vinda lufada de maturidade numa indústria que costuma privilegiar o entretenimento fácil até mesmo nos blockbusters "para adultos", que dirá nas aventuras juvenis. Tratava-se, porém, de um ano particularmente bom para filmes populares, e portanto Jogos Vorazes, com sua execução meio atrapalhada e sua lógica interna translúcida, acabou não se destacando tanto em meio a outros arrasa-quarteirões "sérios" como 007: Operação Skyfall e Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Tanto maior, então, é a conquista deste Jogos Vorazes: Em Chamas, que, no que tem sido um 2013 bastante frustrante, consegue retomar os temas complexos de seu antecessor e empacotá-los numa história mais fluida, mais eficaz e bem mais incendiária, saindo-se no processo como o melhor filme de franquia do ano até agora.

Parte desse sucesso se deve, sem dúvida, à troca de timoneiro: com a saída do experiente Gary Ross, a cadeira do diretor foi ocupada pelo até então pouco conhecido Francis Lawrence, que tomou a decisão correta de deixar de lado as pretensões artescas de Ross e optar por uma condução redonda e precisa. Correta porque, carregada como é de metáforas e subtexto, a trama fala por si mesma — sem necessidade, por exemplo, de uma câmera trêmula para transmitir a sensação de insegurança dos personagens. Dessa forma, quando vemos novamente Katniss Everdeen percorrer a cinzenta sordidez de seu Distrito 12 no início da projeção, a impressão que fica é a de um universo muito mais sólido, mais palpável, e consequentemente mais aterrador em sua brutalidade. Tal imersão se torna ainda mais essencial para o impacto emocional do filme conforme os eventos do primeiro ato se desenrolam, quando descobrimos que o quase-suicídio de Katniss e seu colega de competição Peeta Mellark, que determinou sua excepcional vitória dupla nos titulares Jogos Vorazes ao final do primeiro filme, tem sido visto por alguns dos cidadãos oprimidos da Panem como um ato de rebeldia, e uma prova de que a ideia de se levantar contra aquele sistema fascista não é assim tão absurda.

Tida como responsável por esse clima tenso, Katniss, que no fim das contas só quer garantir a sobrevivência da sua família e amigos, recebe um ultimato do sinistro Presidente Snow: ao longo dos 12 dias da iminente Turnê da Vitória, ela e seu falso namorado Peeta devem convencer a nação de que sua firula nos Jogos não passou de um ato de amor desesperado, nada que tivesse o intuito de motivar rebeliões; caso contrário, todos que ama irão pagar o pato. A heroína consente, mas não cumpre o que prometeu: forçada a encarar a realidade severa dos demais Distritos do país, ela ora fala mais do que devia e atiça multidões, ora não convence com seu teatro artificial de amor e cortesia. Nem mesmo o pedido de casamento feito por Peeta, um fantoche bem mais carismático que ela, acalma os espíritos rebeldes. Ao voltar da viagem, Katniss não vê outra opção senão levar os seus lá para dentro da floresta e torcer para não ser encontrada mais. Antes, porém, que ela possa convencer o amigo de infância Gale a deixar o motim para os outros e ir com ela, o Presidente dá um jeito de arrastá-la para mais uma edição dos Jogos — por ocasião do Massacre Quartenário, uma edição especial que ocorre a cada 25 anos. A regra nova da vez é que os Tributos serão escolhidos a partir do grupo já existente de vencedores.

O filme não tem pressa alguma em chegar nesse ponto da narrativa, permitindo que as tangentes lógicas da situação dos personagens se desenvolvam de maneira sempre impactante: se o arco central pertence indubitavelmente a Katniss, imobilizada pelo seu instinto de sobrevivência embora saiba o quão revoltante é o status quo, a trama não se furta em abarcar uma série de outros conflitos, da angústia silenciosa de Peeta frente ao fato de seu relacionamento com a protagonista ser puro fingimento à fragilidade das colunas midiáticas nas quais se sustenta o sistema de domínio da Capital — de modo que quando a reedição dos Jogos finalmente se torna assunto principal do enredo, há muito mais em jogo para todos os envolvidos do que a sobrevivência imediata, proporcionando ao espectador uma imersão profunda no universo inquieto da história. Com isso, o filme consegue evitar o que poderia ter sido uma reprise do original, introduzindo, de quebra, uma série de Tributos mais interessantes e memoráveis na forma dos vencedores das competições anteriores, em sua maioria adultos já formados ou até mesmo idosos, todos profundamente insatisfeitos com sua condição de reentrantes.

É então que Em Chamas verdadeiramente pega fogo: entre tributos insurretos e levantes populares, o filme, construído desde os primeiros minutos como uma arrojada bomba-relógio, assume de vez um espírito revolucionário que não é mais largado até o último instante da projeção. Com o aumento orçamentário robusto, Lawrence permite-se idealizar uma cenografia bem mais vistosa e sequências de ação mais empolgantes, sem nunca deixar de empregar a riqueza visual e técnica do filme em favor da história. A praticamente todos os personagens, novos ou velhos, é dada a oportunidade de crescer e aparecer, permitindo que todos os componentes do elenco fabuloso mostrem a que vieram. Calouros como Sam Claflin e Jena Malone são instantaneamente magnéticos, e nomes de peso como Elizabeth Banks e Stanley Tucci revelam-se capazes de levar seus personagens além da caricatura a que antes eram limitados; Philip Seymour Hoffman se sai impecável como de costume no papel do ambíguo idealizador do evento, emprestando, junto a veteranos como Jeffrey Wright e Amanda Plummer, uma gravitas de valor incalculável ao todo. Os já antes elogiáveis Woody Harrelson e Josh Hutcherson entregam performances ainda mais realizadas — no caso de Hutcherson, a composição é especialmente fascinante por evidenciar o crescimento deste como ator desde que despontou. Até mesmo Liam Hemsworth faz o que pode, saindo-se razoavelmente bem apesar de ser, sem dúvida, o mais limitado ator em cena. Todo esse esforço conjunto contribui para que este seja o filme a estabelecer Panem como um mundo tridimensional e inebriante, tornando ainda mais contundentes as reflexões que o longa propõe.

Aí, por sinal, encontra-se a força principal não só de Em Chamas, mas também, ao que parece, de toda esta surpreendente cinessérie: aqui, jamais o que se vê na tela é liso; toda interação, em grande ou pequena escala, dá margem para diversas interpretações em torno dos temas onipresentes de opressão sistemática, alienação, sadismo cultural e desigualdade. O que não significa que o filme não tenha foco — neste segundo capítulo, a jornada pessoal de Katniss, sempre à vista por mais intricado que seja seu entorno, traz à tona duas questões centrais — os deveres pessoais nas revoluções e o papel da mídia e da cultura popular nas relações de poder — que Lawrence, juntamente com os roteiristas Simon Beaufoy e Michael Arndt (ambos vencedores do Oscar), dá conta de explorar para efeito máximo, traçando muitos paralelos oportunos com a sociedade humana contemporânea. O resultado é que o embate entre Katniss e o Presidente Snow, traduzido perfeitamente nas atuações arrebatadoras de Jennifer Lawrence e Donald Sutherland, vai muito além de um conflito "mocinha vs. vilão", e acaba por ser um dos confrontos mais instigantes do cinema popular recente. Em Chamas, é, portanto, uma "aventura para jovens" que supera qualquer estigma, o que fica especialmente claro ao analisarmos, por exemplo, o relativamente desinteressante triângulo amoroso central, em que todos os componentes têm conflitos e motivações que extrapolam suas buscas românticas. Sim, é uma produção de inegáveis pretensões monetárias — mas, num meio em que a Saga Crepúsculo é considerada um modelo de sucesso, já é bem mais do que estamos acostumados a antecipar. Que venha logo A Esperança.


Classificação final: