sábado, 24 de novembro de 2012

Casting pra quê?

"Unfortunately, the joke is bullshit."

O casting é uma tarefa difícil. Além de serem encarregados de coordenar todos os detalhes comerciais da contratação de atores, os diretores de elenco devem ter um conhecimento amplo do "mercado de atores" e conhecer as limitações, os fortes e até as preferências pessoais de suas "opções". Precisam conseguir encontrar atores que sejam competentes, compatíveis com os personagens, apropriados à visão do diretor e, acima de tudo, disponíveis. Em muitos filmes, isso é um desafio enorme.

Em filmes de animação, porém, aparenta ser um trabalho relativamente descomplicado: basta encontrar qualquer estrela (não precisa nem ser um ator ou atriz; basta estar no showbiz) que esteja com um espacinho na agenda, dá-la milhões de dólares para entrar no projeto e repetir o procedimento até ter uma lista de uns três ou quatro A-listers com nome suficiente para atrair pessoas para o cinema. Se o número de personagens do filme for grande, é só ir atrás de alguns ex-popstars que andam sumidos — eles não hesitarão em aceitar os papéis menores — ou convocar alguns comediantes ou "atores engraçados" jovens e populares (de preferência vindos da TV, a fim de diminuir os custos) para dar vida aos personagens mais malucos ou excêntricos, o que dará ao filme uma oportuna camada de interesse nerd. Ah, e é sempre bom convocar um "veterano" para dar um ar sério ao elenco — mas precisa também ser uma estrela, e não uma velha lenda nem nada disso.

Essa fórmula cansada e desrespeitosa com o público é repetida em virtualmente todas as produções animadas de estúdios grandes — menos as da Pixar, como explicarei — e por causa disso, animações são, hoje, o gênero cujos filmes têm em média os elencos mais estrelados. E, por mais que eu goste da ideia, é óbvio que essa tendência tem, na prática, motivações principalmente comerciais; esse tipo de casting formulaico e centrado apenas no star power deturpa a ideia principal do diretor de elenco, que é escolher o ator perfeito para cada papel.

E a pior parte disso é aquela a que se refere a legenda da imagem acima: os estúdios sempre fazem questão de esfregar na nossa cara que seus filmes têm superstars no elenco, não hesitando em fazer alarde em torno dos atores que contratam sempre que surge uma oportunidade. Portanto, a piada presente nesse pôster de A Origem dos Guardiões é contraditória ao que a DreamWorks (que produziu e distribui o filme) tem feito até agora: o barulho em cima do megaelenco composto por Chris Pine, Alec Baldwin, Hugh Jackman, Jude Law e Isla Fisher tem sido tão grande que o estúdio chegou ao cúmulo de inscrever seu filme na categoria "Melhor Elenco" do SAG Awards — uma atitude que apoio completamente, mas que aqui foi tomada antes mesmo de o filme estrear, sinalizando que os realizadores querem fazer você acreditar que reuniram o melhor elenco vocal de todos os tempos. Uma suposição baseada, novamente, no star power, e não no talento em si dos atores.

E a DreamWorks é especialista nisso. Todos os seus filmes em CGI, todos mesmo, se sujeitaram à formula supracitada. (Aqueles produzidos pela DreamWorks, e não os só distribuídos por ela, que fique claro.) Começando com Formiguinhaz em 1997 — uma produção que, por melhor que seja, foi, em sua concepção, um plágio confesso de Vida de Inseto —, que trazia em seu elenco Sharon Stone, Sylvester Stallone, Jennifer Lopez (!) e Woody Allen (!!). E, se os atores acabaram sendo elogiados (Allen em especial) e os demais papéis foram dados a veteranos respeitáveis como Danny Glover e Gene Hackman, isso foi mais, como a história provou, porque a DreamWorks ainda não tinha os meios para conseguir muitos atores de primeira. Tanto é que já na sua segunda produção, Shrek, o estúdio contratou Mike Myers, Cameron Diaz e Eddie Murphy para encabeçar o elenco — e teria ido mais longe (provavelmente deixando de lado atores como John Litgow e Vincent Cassel) se tivesse como, o que ficou claro quando, diante da necessidade de contratar um ator latino para fazer o Gato de Botas em Shrek 2, a DreamWorks escolheu simplesmente aquele que era, na época, o ator latino mais estelar do mundo: Antonio Banderas.

Mais discreto impossível.
O cúmulo, porém, veio em 2004, com O Espanta Tubarões — basta olhar para a imagem ao lado para ver qual foi a estratégia da DreamWorks na divulgação. (E o pôster nem menciona as participações de Ziggy Marley e Christina Aguilera.) Foi esse filme que começou, efetivamente, a onda do casting comercial em animações, um padrão que todos os filmes subsequentes da DreamWorks, e também todos os outros filmes de animação com grande distribuição, seguiriam. (E por isso, mesmo jamais tendo assistido a O Espanta Tubarões, ele está na minha lista negra cinematográfica.) Mesmo na ponta do lápis, é quase impossível escapar um sequer — exceção feita, inexplicavelmente, a algumas produções internas da Disney, como A Família do Futuro e A Princesa e o Sapo, o que é irônico tendo em vista que o estúdio foi pioneiro na escalação de estrelas para elencos vocais (vide Robin Williams em Alladin).

Há uma contracorrente, porém, que fica evidente no principal adversário de O Espanta Tubarões à sua época de lançamento: o já clássico Procurando Nemo, da (claro) Pixar — que, como afirmei anteriormente, é o único estúdio grande a resistir a essa tendência. (E como poderia ser outro?) Sim, é possível argumentar que Procurando Nemo cedeu um pouco à febre ao convocar Ellen DeGeneres para fazer Dory. Mas assista o filme em inglês e verá que qualquer outra atriz no mundo seria errada. Qualquer outra. (Katharine Hepburn seria errada.) Além disso, reza a lenda que Andrew Stanton pensou em DeGeneres no meio da produção do filme e reescreveu o personagem especificamente para ela, então há um fundo de nobreza na decisão. Mas eis o restante do elenco de Procurando Nemo: Albert Brooks, Willem Dafoe, Geoffrey Rush, Allison Janney, Brad Garrett. Desses, apenas Garrett poderia ser visto como uma escolha oportuna — mas ele já estava com a Pixar desde 1997, quando Everybody Loves Raymond ainda era só uma criança. Todos os outros são veteranos altamente respeitáveis, e muitos poderiam ser vistos como escolhas até arriscadas, dado o público-alvo (eu mesmo não conhecia Brooks até o ano passado). Ah, e mencionei que há uma participação especial no filme? Se você pensou em uma superestrela como Brad Pitt ou Johnny Depp, errou: quem aparece de surpresa é Eric Bana, em começo de carreira cinematográfica e dividindo a tela com outros dois atores desconhecidos. E isso tudo apesar de a Pixar já ter se firmado, a essa altura, como um estúdio de imenso prestígio.

Sem contar a escalação de Tom Hanks e Tim Allen para Toy Story (o que é perdoável, considerando o quanto os personagens se tornaram emblemáticos na carreira dos dois), esse respeito pela qualidade do elenco em detrimento do star power sempre foi característico da Pixar: em Vida de Inseto, apesar do imenso sucesso de Toy Story, o pouco conhecido mas elogiado ator/roteirista de TV Dave Foley foi convocado para fazer Flik, e embora o elenco de personagens do filme fosse grande e diverso, os demais atores não eram comediantes com apelo pop ou estrelas fora de circulação, e sim veteranos como David Hyde Pierce, Richard Kind, Phyllis Diller, Madeline Kahn e — atenção — Kevin Spacey. (Curiosamente, havia também no elenco a mirim Hayden Panettiere, que chegaria ao semi-estrelato muitos anos depois, em Heroes.) Em Monstros S.A., o cuidado se repetiu: além de John Goodman e Billy Crystal, perfeitos nos papéis principais, havia ainda no elenco, em casting irretocável, Steve Buscemi e James Coburn — sim, James Coburn (1928-2002), que embora fosse um veteranaço vencedor do Oscar, jamais teria vez em uma produção animada hoje, porque já tinha passado do auge. Em Os Incríveis, Craig T. Nelson e Holly Hunter (vencedora do Oscar, mas longe de ser uma superstar) foram os eficientes protagonistas em um elenco cujo maior nome era Samuel L. Jackson (se você quiser criticar a escolha de Samuel L. Jackson, fique à vontade, mas eu não vou correr o risco). E em Carros, o casting foi inteligente ao contrapor sua única "estrela", o protagonista Owen Wilson, aos veteranos que interpretaram os carros da nostálgica Radiator Springs, como George Carlin, Paul Dooley, Katherine Helmond, Cheech Martin, Tony Shalhoub e PAUL NEWMAN. (Que outro estúdio daria um papel principal a Paul Newman àquela altura?) Além disso, para fazer Sally, a Pixar não escalou uma estrela jovem como Owen Wilson (o que qualquer outro estúdio faria), mas chamou novamente uma constante em seus filmes para dar a "experiência" necessária à personagem: Bonnie Hunt.

Isso nunca mudou. A Pixar já chegou ao ponto de não usar atores profissionais para os papéis principais, em WALL-E (que tinha participações de Jeff Garlin, Fred Willard e Sigourney Weaver, mas só), e fazer um filme protagonizado por dois atores rodados que o público jovem conhecia pouco, mas que mereciam todos os papéis que lhes fossem dados — Ed Asner e Christopher Plummer (anos antes do Oscar) em Up - Altas Aventuras. Recentemente, ao perder Reese Witherspoon (a escolha inicial para Merida, o que admito ter sido provavelmente uma decisão comercial) em Valente, a Pixar a substituiu por uma atriz escocesa subvalorizada, Kelly Macdonald, ao invés de ir atrás de outra estrela. Como se isso tudo não bastasse, o estúdio usou muito bem as oportunidades de acrescentar novos atores às suas cinesséries, incluindo em Toy Story 2 Joan Cusack e Kelsey Grammer, e em Toy Story 3 Ned Beatty e Michael Keaton. Enquanto isso, a Blue Sky acrescentou a A Era do Gelo 2 Queen Latifah, Josh Peck (de Drake & Josh) e Seann William Scott (o Stifler de American Pie), e a DreamWorks escalou Justin Timberlake para Shrek Terceiro. Percebe a diferença?

Acredite: é triste para mim dizer isso tudo. Eu gostaria muito que os outros estúdios de animação se esforçassem mais em trazer atores realmente bons, e não apenas estrelas em alta, para seus projetos. Mas isso ainda é longe de ser uma realidade. Para cada Dustin Hoffman ou Frances McDormand, para cada John Cleese ou Hugo Weaving, há cinquenta Taylor Swifts, Ashton Kutchers, America Ferreras, Tracy Morgans, P!nks, Adam Sandlers, Russell Brands, Roseanne Barrs, Chris Rocks, Miley Cyruses, Seth Rogens, Andy Sambergs, Will.i.ams, Martin Lawrences, George Lopezes, Will Ferrells, John Travoltas, Sacha Baron Cohens, Jackie Chans, Aziz Ansaris, Selena Gomezes e por aí vai. (Nada contra alguns desses atores, mas você entende onde quero chegar.) Isso, para mim, não é apenas um desrespeito à profissão do diretor de elenco; é um desrespeito ao próprio gênero animação, que acaba se tornando ainda mais um terreno puramente comercial e infantil ao ver da maioria das distribuidoras. Eu gostaria de viver em um mundo no qual todo filme de animação se prontificasse a concorrer a prêmios de Melhor Elenco — há um preconceito terrível contra atuações vocais em Hollywood —, mas o mundo em que vivemos é um no qual filmes como A Origem dos Guardiões só fazem isso pra chamar atenção para seu time de estrelas. E isso é sintomático de todo esse desrespeito.

Pior ainda: as companhias de dublagem brasileiras há muito aderiram ao padrão, nos forçando a engolir aqui e ali a performance dolorosa dos Luciano Hucks da vida (ver Enrolados). Sobre isso muita coisa já foi escrita, então só vou acrescentar que é uma oportunidade desperdiçada de elevar a tão elogiada indústria de dublagem brasileira a um patamar mais alto. Menos mau para os defensores do áudio original.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

I don't know what the hell a third act is

A minha vontade, sinceramente, era escrever um texto hiper-meta com camadas e camadas de neurose que se confundiriam no meu espectro criativo e naquele do meu objeto de discurso, completando e não completando uma estrutura intangível e esmagadora de bonecas russas que derramariam diante de mim todos os meus medos, alegrias, decepções e paixões cortadas prematuramente pela minha obrigação com o mundo ou alguém dele, mesmo sem eu ter jamais me conhecido completamente, e as bonecas surtiriam o mesmo efeito em todas as pessoas do mundo que se dispusessem a não voltar sua atenção aos meus oponentes conceituais — usar "conceitual" nas coisas é tão pedante, meu Deus — porque eu conheceria a fundo os medos, alegrias, decepções e paixões cortadas prematuramente de todo mundo mesmo eu sendo uma personificação do Pinguim Socialmente Deslocado que chega a um nível de auto-desprezo tão estupidamente grande que me faz capaz de produzir um, dois, vários textos mostrando a todos o quanto eu sou ridículo e patético e insignificante, mesmo eu sabendo que textos como esses me tornariam propenso às críticas daqueles que já me achassem pretensioso demais para o meu próprio bem — mas eu iria em frente, assim que conseguisse o apoio prático e logístico de que eu precisasse, e me submeteria às críticas e ao fato incontornável de não ser eu a colher os louros se tudo desse certo no final, porque eu seria um artista, por mais que isso me fizesse mal, e mesmo que isso me tornasse miserável eu poderia relativizar o meu sofrimento com um novo texto que expusesse a decepção a que todos os seres humanos se submetem todo dia. A minha vontade era essa porque só assim eu conseguiria escrever um texto-homenagem à altura de Charlie Kaufman.

Se você não sabe (e eu já aviso que abandonei completamente qualquer ambição de tornar esse texto estruturalmente interessante, porque qualquer tentativa que eu fizesse empalideceria diante da obra do meu objeto de discurso), Charlie Kaufman é um nova-iorquino baixinho e neurótico que evita a todo custo aparecer na televisão e não é particularmente afeito a entrevistas, apesar de estar imerso desde os anos 90 na indústria cinematográfica e ser o roteirista de obras-primas modernas como Adaptação e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.

Interpretado no cinema por Nicolas Cage.
Kaufman era um leitor ávido na infância, e se mudou do estado de Nova York para uma cidade média em Conneticut logo antes de inciar o colegial, onde teve sucesso como ator em peças escolares. Acabou indo fazer cinema na New York University, vindo a se tornar empregado no departamento de entregas de um jornal em Minneapolis antes de tornar um roteirista de TV contratado em Los Angeles no início dos anos 90. Finalmente, após resistir a vários "não"s de executivos, ele conseguiu que o seu roteiro Quero Ser John Malkovich fosse lido por Francis Ford Coppola, e o então genro deste, Spike Jonze, acabou dirigindo o filme, que se tornou um enorme sucesso de crítica e teve lucro suficiente para impulsionar as carreiras do diretor e de Kaufman.

Hoje, após ter sido indicado ao Oscar três vezes como roteirista e vencido uma, e gozando de maior prestígio entre a crítica do que qualquer outro de sua geração, Charlie Kaufman está trabalhando em uma animação em stop-motion financiada com doações, e se esforça para conseguir inciar a produção de seu mais novo projeto de longa, que está na geladeira há anos embora haja um roteiro pronto em circulação e um elenco disposto a começar a filmar.

Não é por qualquer razão que esse agora também diretor (vide seu incompreendido Sinédoque, Nova York) é considerado o roteirista mais brilhante em atividade. Jamais temendo em ir além das fórmulas e conseguindo sempre criar projetos que, apesar de em muito pessoais, são capazes de dialogar com as emoções de qualquer pessoa, Charlie Kaufman é um mindfucker nato, mas também um artista humano, que mistura Woody Allen e David Lynch em todos os seus projetos mas consegue estabelecer sua própria marca neles, e isso tudo apesar de nem sequer dirigir a grande maioria de seus filmes.

Mas esse feito é possível, talvez, porque o grande fio que une todos os filmes escritos por Kaufman é a sua temática, que trata sempre do funcionamento da mente, e de como as emoções interferem com esse funcionamento. Veja bem: em Quero Ser John Malkovich, Kaufman cria uma metáfora bizarra para a vontade que muitos sentem de ser outra pessoa, e utiliza a imagem de marionetes para representar o contraste entre a necessidade de estar no controle e o impulso natural de ser controlado presentes em todo ser humano. Em Adaptação, faz um estudo metalinguístico da obsessão por fórmulas da sociedade e do efeito dessa obsessão sobre o processo criativo, seja do artista ou de qualquer outra pessoa, além de apontar o vazio e a ilusão que se escondem nas paixões mais profundas. Em Brilho Eterno..., observa o amor, a sua formação, sua natureza e seus efeitos colaterais existentes diretamente na mente das pessoas. E em Sinédoque, NY, ele faz uma omelete com todas as mágoas e injustiças incontornáveis intrínsecos à existência humana a partir dos esforços criativos de um autor tão egocêntrico que só é capaz de consumir sua vida trabalhando em uma obra de arte sobre ele mesmo consumindo sua vida trabalhando em uma obra de arte sobre sua vida.

É necessária uma ousadia tão grande, e um impulso artístico tão nobre, para fazer filmes com temas com essa profundidade e permeá-los com labirintos de complexidade capaz de afugentar a imensa maioria das pessoas que veem filmes, que Kaufman mereceria méritos mesmo que seus roteiros não fossem lá muito bons — mas eles são, e não só porque têm o dom raro de quase entender realmente como é e funciona o ser humano, mas porque são, invariavelmente, tão metafísicos, metalinguísticos, conscientes de si mesmos, abrangentes, antiformulaicos e auto-depreciativos que, mesmo em seus momentos de menor grandeza, somos obrigados a acreditar que tudo o que está neles, de bom ou de ruim, é inteiramente intencional e tem um propósito artístico que não somos capazes de enxergar — como se, lá de sua casa em Pasadena, Kaufman estivesse nos vendo, rindo e dizendo "Vocês não entendem nada. Jamais entenderão".

Um projeto tão independente que foi financiado com doações.
Hoje, eu me arrependo de ter escrito uma mini-resenha para Brilho Eterno..., porque os filmes escritos por Kaufman, todos os que vi até agora (4 de 6, ou "os essenciais"), estão acima da avaliação comum; não estão sujeitos ao mesmo tipo de provação técnica que é dada a outros filmes de alto nível como, digamos, A Rede Social. Não tenho nenhuma reserva em relação ao filme de David Fincher (que considero um dos mais memoráveis dos últimos anos), mas é completamente possível avaliá-lo como um trabalho "normal", que não se preocupa demais em fugir radicalmente de padrões ou transmitir sua mensagem enquanto faz pouco caso das expectativas da audiência, como é de praxe nas produções escritas por Kaufman. Como se pode avaliar um filme como Adaptação de forma normal, quando o próprio filme afirma, explicitamente, que tudo o que geralmente procuramos observar e gostar/não gostar em produções hollywoodianas é besteira pura? Como julgar o progresso da trama de Sinédoque, Nova York se o objetivo do filme é fazer um retrato quase surrealista da angústia? Filmes como os de Kaufman desafiam o expectador a deixar todas as suas pré-concepções na porta da sala de projeção; muitas vezes, eles requerem que os vejamos múltiplas vezes para compreender tudo o que querem nos dizer do alto de sua ambição quase épica.

Kaufman, em anos recentes, foi responsável por elevar o roteirista a uma posição de "autor" do filme que, muitas vezes, sobrepuja a do próprio diretor; se é certo que filmes como Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno... perderiam grande parte de seu impacto sem a condução audaciosa de Spike Jonze ou Michel Gondry, eles serão lembrados na história como êxitos de Kaufman; hoje, ele é visto como a principal mente criativa por trás de todos os seus projetos (menos Confissões de Uma Mente Perigosa, cujo roteiro foi substancialmente atropelado pelo diretor George Clooney) e se espera dele, ansiosamente, que surja logo outro brain teaser para nos dar iluminação em meio ao marasmo criativo de Hollywood (não que não hajam cineastas ambiciosos e criativos em atividade, é só que não há suficientes). Por isso, todo roteirista deveria ser ainda mais grato a ele — "ainda mais" porque Kaufman decerto forneceu inspiração para muitos, muitos dos que vieram depois dele.

Ontem, 19 de novembro de 2012, foi o aniversário de 54 anos de Charlie Kaufman. (Foi também o aniversário de Jodie Foster, Allison Janney e Meg Ryan, diga-se. Que dia.) Eu espero que ele continue por muitos anos de vida a nos tocar e fazer pensar com seus brilhantes trabalhos — só foram quatro "essenciais" até agora, o que não é nem de longe suficiente para compor uma grande filmografia, e ao mesmo tempo mostra a capacidade de Kaufman de dizer muito com pouco. Agora que ele também dirige seus projetos, então, pode-se esperar que sua visão artística seja ainda mais realizada em seus filmes. Por essas e outras, espero ansiosamente que alguém se disponha logo a financiar Frank or Francis, o tal projeto na geladeira — e o fato de ele ser anunciado como um musical farsesco satirizando a temporada de premiações e os críticos de cinema virtuais torna minhas expectativas ainda maiores. Como já se provou, um ótimo conceito + Charlie Kaufman é garantia quase infalível de uma obra-prima.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Resenha 12: "Toda Forma de Amor", de Mike Mills

Ewan McGregor, Mélanie Laurent e Cosmo em Toda Forma de Amor. © Focus Filmes.
Beginners, EUA, 2010. Romance/Dramédia. 105 minutos. Direção: Mike Mills. Escrito por: Mike Mills. Elenco: Ewan McGregor, Christopher Plummer, Mélanie Laurent, Goran Visnjic, Kai Lennox, Mary Page Keller, Keegan Boos, China Shavers, Cosmo. Classificação indicativa: 12 anos.

Toda Forma de Amor é uma gema. Não consigo pensar em um termo melhor para resumir a complexa simplicidade desse trabalho semibiográfico de Mike Mills, que lida com o amor em todas as suas formas com singeleza e originalidade estética ao mesmo tempo em que dá a seus atores um veículo e tanto para seus talentos — tanto é que o trabalho delicado de Christopher Plummer deu ao filme a sua única indicação (e vitória) no Oscar desse ano.

À época do seu lançamento unicamente em DVD no Brasil, Toda Forma de Amor era marquetado como um olhar sobre o "amor moderno", e, realmente, é difícil imaginar um filme mais apropriado, tanto estética quanto narrativamente, para o rótulo. Seguindo três momentos distintos da vida do protagonista Oliver — um, a sua infância nos anos 70, e os outros dois no passado recente —, a história narra o progresso do relacionamento entre ele e Anna, uma atriz francesa de passagem pela cidade onde ele mora, dois meses após a morte de seu pai Hal, e ainda se ocupa de recontar os últimos anos de vida deste ao lado do filho e também de seu jovem namorado — Hal é gay, mas só criou forças para sair do armário após a morte de sua esposa, e a essa altura ele já passava dos 70.

Não vale a pena dar mais detalhes sobre o enredo porque não há, exatamente, um enredo. Nós vemos Oliver e Anna descobrindo mais um sobre o outro em confissões lacrimosas sobre seus passados familiares, e assim se apaixonando; vemos Hal conseguindo convencer a todos de que está feliz apesar da descoberta de um câncer, enquanto Oliver observa desconfiado; vemos a mãe de Oliver tocando uma rotina que procura acrescer de felicidade para consolar o filho pela ausência de seu pai. Em todas essas tramas colineares, a dinâmica entre os personagens é assombrosa; em nenhum momento nós pensamos em nos lembrar de que aquelas pessoas não existem realmente. O relacionamento entre Oliver e Anna é por certo um dos mais verossímeis e orgânicos dos últimos anos no cinema, e isso se deve muito à química espetacular entre Ewan McGregor e Mélanie Laurent (mais sobre o elenco em cinco minutos).

E essa verossimilhança enriquece tematicamente Toda Forma de Amor, já que a proposta do filme é, primeiramente, retratar um relacionamento moderno e estudá-lo silenciosamente através de um panorama dos outros relacionamentos importantes da vida do protagonista. Dirigindo seu segundo roteiro de longa, Mills dá ao filme uma qualidade estética única (e eficiente para a história) ao usar fotos de arquivo e o voiceover de McGregor para estabelecer épocas e personagens. Ressaltando aspectos específicos de cada momento histórico de que fala — o presidente, a moda, a noção de beleza —, o filme traça um paralelo humano entre o presente e o passado, o que acrescenta mais um alicerce à ponte construída entre os diversos momentos da vida de Oliver. Quando se soma isso à astúcia e ao realismo da narrativa no seu belo painel dos amores do século 21, o resultado é uma produção verdadeiramente "moderna", tanto em sua temática quanto em sua abordagem.

Por trás dessa camada de chantily presente na fofura persistente (e bem-vinda) de seus protagonistas e do cãozinho Arthur ("interpretado" pelo jack russel Cosmo, que rivalizou com o Uggie de O Artista como cachorro-revelação de 2011), porém, esconde-se um profundo apuro psicológico por parte do realizador. O filme é, em segundo plano, um estudo de personagem de Oliver, e isso fica evidente na forma como as suas tramas são estruturadas — a narração sincera e nem um pouco expositória deste parece sugerir que ele enxerga o início do relacionamento com Anna com mais nostalgia e o falecimento do pai com relativa frieza, e é também acertada a decisão de não empregar o recurso durante as cenas de Oliver com a mãe, já que estas são momentos íntimos do protagonista, de que ele parece apenas se lembrar em segredo. O insight fornecido pelas "falas" de Arthur (vistas através de legendas) é providencial, mantendo-se condizente com a possível mentalidade de um cachorro e ao mesmo tempo servindo como espelho para os pensamentos do próprio Oliver (dizem, é bom lembrar, que você é o que o seu cachorro é).

O que me leva, é claro, ao elenco. Se o texto do filme explora com delicadeza e irretocável sinceridade os romances contemporâneos e seus desdobramentos, é preciso dar crédito aos atores por criarem personagens que surgem tão realistas a ponto de parecerem, de serem pessoas reais — é fácil acreditar, por exemplo, que Mary Page Keller e Keegan Boos são realmente mãe e filho, ou que Goran Visnjic está mesmo perdido de amores por Christopher Plummer. McGregor é confiável como sempre, expressando em seus olhares e expressões tudo aquilo que Oliver refreia em suas palavras, e o "apoio" de Laurent é formidável; sua atuação é tão rica e honesta que aparenta não ser, já que tudo o que vemos na tela é uma pessoa real e não uma atriz (OK, a personagem dela é uma atriz, mas você entende o que eu quero dizer). O elenco menor é competente, transmitindo a sensação de que o filme é povoado por pessoas sendo elas mesmas. Quanto a Plummer, só posso dizer que ele mereceu ter sido aplaudido de pé no Oscar.

O filme, na verdade, merecia mais indicações ao prêmio: o roteiro perspicaz de Mike Mills e a edição estilosa de Olivier Bugge Coutté eram também merecedores de atenção. Bem-sucedido no Oscar ou não, porém, Toda Forma de Amor merece ser visto. É um daqueles raros filmes em que a "suspensão da descrença" do espectador não é testada, não sendo sequer, na verdade, necessária: o grande mérito de Mills e seu elenco, aqui, é que tudo o que vemos na tela parece real em alguma medida. Até mesmo um cachorro falante.


Classificação final:
Oscar: Melhor Ator Coadjuvante (Christopher Plummer)

sábado, 17 de novembro de 2012

Resenha 11: "Um Homem Sério", de Joel e Ethan Coen

Michael Stuhlbarg e Sari Lennick em Um Homem Sério. © Focus Filmes.
A Serious Man, EUA, 2009. Dramédia. 106 minutos. Direção: Joel e Ethan Coen. Escrito por: Joel e Ethan Coen. Elenco: Michael Stuhlbarg, Richard Kind, Fred Melamed, Sari Lennick, Aaron Wolff, Jessica McManus, Peter Breitmayer, Amy Landecker, David Kang, Adam Arkin. Classificação indicativa: 16 anos.

(Ok, esse filme não era recomendado para menores de 16 anos. Eu aciono o Alerta de Semi-Ilicitude da Resenha ou A.S.I.R.)

Os irmãos Coen são parte de uma longa lista de auteurs contemporâneos cujos filmes ainda são quase inexplorados pelo que vos fala. O primeiro contato que tive com a obra dos dois foi, previsivelmente, com Bravura Indômita, ironicamente o filme mais "normal" deles segundo a crítica. O segundo foi com algumas cenas soltas de Queime Depois de Ler, e já aí era possível verificar a viés dos dois para o humor ácido e observacional. Agora, com este Um Homem Sério, lançado em 2010 no Brasil, eu provavelmente tive a primeira experiência genuinamente "coeniana" de, espero, várias outras. (Fargo e Arizona Nunca Mais já estão na minha watchlist.)

Um dos trabalhos mais pessoais dos Coen, me parece, esse filme tem seu primeiro — e talvez mais importante — mérito narrativo no fato de conseguir integrar a cultura judaica perfeitamente à história sem torná-la incompreensível para aqueles não familiares com ela. Até mesmo vocábulos hebraicos como dybbuk e get são completamente inteligíveis graças aos contextos criados. Além disso, o desajeito dos goyim (não-judeus) frente aos costumes e palavras do protagonista e seus correligionários é uma fonte confiável de humor durante toda a produção.

Na verdade, é admirável a forma como os diretores/roteiristas conseguem extrair comédia de uma situação tão desesperadora quanto aquela em que colocam Larry Gopnik, o titular homem sério: pressionado pela esposa/inquilina a realizar um divórcio cerimonial para que ela possa se casar com outro homem, o qual, apesar de responsável pela tragédia familiar, insiste em manter uma postura cordial e amigável com ele, o protagonista é forçado a aguentar ainda a inércia de seu irmão Arthur, que dorme no sofá da sala e passa todo o seu tempo trabalhando em um tal de "mapa da probabilidade do universo" que usa para jogar e fazer apostas; além disso, ele é informado de que um anônimo tem escrito cartas negativas a seu respeito para a diretoria da escola onde é professor, e um aluno lhe oferece uma grande soma em dinheiro para que altere uma nota baixa.

Empregando um ritmo deliberadamente lento que serve para mostrar a insatisfação crescente do protagonista com sua vida, os Coen usam o seu humor peculiar para acentuar a repetitividade asfixiante da rotina dos Gopnik, desde o tio que passa horas a fio no banheiro, sempre a anunciar que "vou sair em um minuto", à filha mais velha que não passa um dia sem explicar que pretende ir a uma casa noturna hoje à noite. Mas, se o humor, as cenas iniciais e a ótima recriação de época servem mais para situar os personagens do filme, o foco principal dos realizadores é mesmo a sua ambiciosa temática, que lida com o homem e a religião, a dúvida sobre a existência e as motivações de Deus, e a necessidade humana de respostas que nem sempre chegam. Transformando Larry num verdadeiro Jó ao longo do filme, e acompanhando a sua indignação crescente com os obstáculos que Hashem (a.k.a. Deus) põe em seu caminho enquanto ele tenta se manter "um homem sério" (e é impressionante a forma como Michael Stuhlbarg dá vida ao personagem, mantendo-o sempre verossímil, e não caricato, em sua angústia), o filme lança mão de antipatias sem justificativa, mortes repentinas e rabinos inúteis para convencer o espectador de que Larry está correto em seu desespero crescente, algo de que nós não duvidamos nem por um segundo. E diz muito a decepção de Larry por estar naquela situação, aparentemente, por não ter feito nada (algo que fica bastante explícito no diálogo entre ele e o representante de um tal Clube de Discos Columbian).

É curiosa, ainda, a decisão dos Coen de, a partir de certo momento, dividir o filme em três partes lineares correspondentes aos rabinos que Larry visita, já que cada uma dessas partes acaba funcionando como uma parábola em função do conjunto. (Na verdade, em dois momentos do filme, um deles logo nos minutos inciais, nós testemunhamos parábolas sem qualquer relação com o resto da história que aumentam a confusão do expectador para equipará-lo a Larry, e, paradoxalmente, reforçam a ideia central do filme de que algumas perguntas não podem ser respondidas, em uma metáfora metalinguística brilhante de que só me dei conta agora.)

A ambição temática de Um Homem Sério tem seu impacto sobre o espectador aumentado graças a competência narrativa do filme, que, além de contar com um elenco de atores pouco afamados que parecem ter nascido para os papéis — uma decisão louvável dos irmãos, já que eles poderiam conseguir as estrelas que quisessem para quaisquer de seus projetos —, é capaz de envolver o espectador emocionalmente graças à história paralela do desajeitado filho de Larry, que serve quase como um espelho da trajetória do protagonista — e pode-se até dizer que Danny e Sy, o novo futuro marido da mulher de Larry, servem como espécies de id e superego, respectivamente, para o ego do professor.

Trazendo, em seus minutos finais, uma conveniente contradição de ideias ao afirmar, em momentos distintos, que a religião pode ser uma tolice insalubre (vide a aflição de Danny em seu bar mitzvah) e que a justiça divina talvez paire realmente sobre nós ("talvez" porque o final, na verdade, é meio em aberto), Um Homem Sério é um pequeno grande filme, para todos os envolvidos e também para o público que lhe souber dar valor; uma produção que não se furta em propor discussões e questionar diversos valores da sociedade sem se preocupar muito em satisfazer as necessidades de compreensão do espectador. E, apenas por isso, é um filme que merece ser visto por qualquer pessoa que busque uma história instigante e provocadora de pensamento, ainda que nem tanto por aqueles que buscam apenas entretenimento fácil.


Classificação final:
Oscar: Indicado a Melhor Filme e Melhor Roteiro Original (Joel e Ethan Coen)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Resenha 10: "Valente", de Mark Andrews e Brenda Chapman

Merida (Kelly Macdonald), Lorde Macintosh (Craig Ferguson) e seu filho, Lorde Dingwall (Robbie Coltrane) e seu filho, Lorde MacGuffin (Kevin McKidd) e seu filho, Elinor (Emma Thompson) e Fergus (Billy Connolly) em Valente. © Disney.
Brave, EUA, 2012. Animação/Fantasia/Família/Aventura/Dramédia. 94 minutos. Direção: Mark Andrews e Brenda Chapman. Escrito por: Brenda Chapman, Mark Andrews, Steve Purcell e Irene Mecchi. Elenco: Kelly Macdonald, Emma Thompson, Billy Connolly, Julie Walters, Robbie Coltrane, Kevin McKidd, Craig Ferguson. Classificação indicativa: Livre.

Antes de mais nada, acho correto esclarecer, pelo bem da integridade jornalística (há há), que eu, assim como boa parte da população, sou fã incondicional da Pixar e de praticamente tudo o que eles fizeram até Carros 2 (que não é um filme ruim, mas tampouco é bom o suficiente). Acho difícil isso turvar o meu julgamento, mas já aviso para evitar posteriores desconfortos.

Na verdade, para grande parte dos críticos o fato de um filme ser da Pixar já o coloca em posição delicada, visto que espera-se dele automaticamente que faça jus ao nível absurdamente alto que foi estabelecido e mantido pelo estúdio ao longo dos anos. Carros 2 foi uma vítima dessas expectativas muito altas, e Valente tem sido. Inicialmente, ao assistir o filme nos cinemas e com a distraidora dublagem em português (que vitimou até mesmo as antes belas canções interpretadas por Julie Fowlis), eu me esforcei mais do que gostaria para apreciá-lo, por motivos que já explicarei. Com o tempo, porém, a sutileza do filme cresceu em mim, e, ao revê-lo em DVD nessa semana de lançamento, eu realmente tive uma experiência diferente, e em muito melhorada.

Pra começar, o trabalho vocal do elenco original é excelente; apesar de ter custado um pouquinho a me acostumar aos sotaques escoceses, eu não demorei pra me surpreender com a vivacidade que Kelly Macdonald — uma atriz desconhecida no Brasil, mas que tem algum reconhecimento nos EUA como um talento subvalorizado graças a atuações como as em Onde os Fracos Não Têm Vez e na série Boardwalk Empire — dá à protagonista Merida, o que não é pouco considerando que a escocesa teve o imenso desafio de ser a primeira "atriz principal" da história da Pixar. A experiente Emma Thompson é igualmente notável em sua performance impactante e matizada como a rainha Elinor, e o elenco de apoio, por assim dizer, é bem-sucedido na tarefa de dar alívio cômico ao filme — Billy Connolly, em particular, consegue transitar formidavelmente entre a caricatura ruidosa e o desespero que toma conta de seu personagem no terceiro ato.

E o filme, em si, cumpriu com minhas suspeitas e revelou-se muito mais profundo e emocional da segunda vez. Após uma abertura eficiente que nos apresenta aos personagens de forma dinâmica e convence ao retratar o sufoco de Merida em meio à sua rotina aristocrática imposta por Elinor — sequência esta que ainda serve como uma desconstrução curiosa do tipo "princesa Disney" que Merida repudia —, o filme não demora em nos apresentar ao seu conflito principal: o casamento arranjado que se enuncia sobre a pobre princesa ruiva, e que sua mãe insiste ser importante para a manutenção da paz do reino. Após uma sequência brilhante que ilustra com precisão a falta de comunicação entre mãe e filha e a dificuldade que as duas têm de enxergar o lado da outra (não darei detalhes para não estragar o impacto, já que o filme tem menos momentos geniais do que a maioria das produções da Pixar), os três lordes cujos filhos competirão pela mão da princesa chegam ao castelo, e, previsivelmente, é um pretendente pior que o outro.

Ao longo de todo esse primeiro ato, pipocam diálogos e cenas que ecoarão pelo resto do filme para pontuar a jornada pessoal de Merida e Elinor, em uma jogada esperta dos realizadores. Além disso, é admirável a forma como a aura de comemoração da chegada dos lordes é rapidamente quebrada e transmutada em tensão absoluta graças às ações/reações de Merida e Elinor, que mostram-se completamente orgânicas e até mesmo relacionáveis, tanto para filhas quanto para mães (e o efeito dramático da sequência é potencializado novamente pelas atuações de Macdonald e Thompson). Assim, a narrativa é logo atirada em um sufoco momentâneo que serve para dar origem à principal reviravolta da história — e isso tudo é feito enquanto a relação delicada entre as duas protagonistas vai sendo hábil e comoventemente desenhada.

A partir da metade do filme, o foco muda bastante, e começa uma prolongada seção narrativa que acompanha o desenvolvimento de Merida e Elinor enquanto elas aprendem a ouvir mais uma à outra — é tanto mais louvável que o roteiro consiga manter essa transição crível e envolvente mesmo com uma barreira enorme de comunicação colocada por ele entre as duas. Assim, sem demorar muito, Valente se torna algo que boa parte da crítica não pôde enxergar: um estudo psicologicamente astuto da relação entre mães e filhas (ou pais e filhos de modo geral), e ao mesmo tempo um incitador de discussões sobre a necessidade de equilibrar as tradições/convenções e a quebra destas. Isso tudo é feito de forma sutil e tocante, através de metáforas inteligentes como aquela em que a protagonista, que durante toda a produção se manteve adversa às tradições femininas, entrega-se à costura de uma tapeçaria por imaginar que isso salvará sua mãe, apenas para descobrir que esta talvez não seja a solução, e cenas emotivas como um flashback que mostra a devoção amorosa de Elinor a uma Merida de colo, o que, pelo que já sabemos do enredo, coloca ainda mais em jogo para a princesa. Por várias vezes, cenas que até então aparentavam ser oportunidades perdidas ou mesmo momentos descartáveis mudam de significado com o desenvolvimento da trama, comprovando a inteligência dos roteiristas. E a tensão é construída com cuidado ao longo dos dois últimos atos, levando a um clímax emocionante que coloca todos os personagens principais em situações de completo "terror adulto" (o que é ainda mais evidente nas reações do até então divertido e despreocupado pai de Merida), mostrando que a Pixar ainda sabe como mexer com os corações de mães e pais.

Normalmente, toda essa construção psicológica/filosófica cuidadosa (que se revela uma das mais sombrias e maduras da história da Pixar) e a forma competente como ela é conduzida pelos diretores, somadas ao costumeiro preciosismo do estúdio no que diz respeito aos visuais — os cenários espetaculares e o incrível cabelo de Merida seguramente tornam este filme um dos maiores feitos da história da computação gráfica no cinema —, seriam suficientes para garantir a essa 13ª produção do estúdio de Emeryville o status de clássico instantâneo facilmente alcançado por muitos de seus antecessores. Mas Valente perde uma estrela por ter persistentes e pronunciados problemas de ritmo — e isso não é culpa dos montadores, e sim da própria construção da história, que sofre por depender demais de um grupo de personagens reduzido que rapidamente se torna sufocante por sua repetitividade (não me refiro à inesquecível dupla de protagonistas, e sim a personagens coadjuvantes como os lordes e os irmãos de Merida). Além disso, o filme peca por apressar-se demais na resolução do conflito entre Merida e Elinor, e embora esta seja feita com exatidão psicológica absoluta, a sensação dada pela decisão de passar todo o segundo ato em apenas algumas horas não é tanto a de uma urgência incontornável, como queriam os realizadores, quanto a de uma excelente oportunidade perdida de ir mais a fundo na análise das relações mãe/filha — é só comparar este filme com Procurando Nemo, por exemplo, e fica claro que o âmbito de sua história é bem menos ambicioso e interessante. Ainda assim, Valente é uma produção importante — Merida é a primeira "princesa da Disney" a não ter ou depender de um príncipe, o que revela a preocupação da Pixar em dar às meninas um modelo de comportamento mais atual — e que funciona muito bem, na maior parte do tempo, como entretenimento tocante e inteligente, além de passar uma série de mensagens ótimas para filhas/filhos e mães/pais. E, se isso não é suficiente para igualá-lo às obras-primas que a Pixar já mostrou-se capaz de fazer, ainda é mais que o bastante para permiti-lo integrar a filmografia do estúdio sem passar vergonha.


Classificação final:

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Eu acho que devo uma explicação (+ resenhas 5 a 9)

No acidentado princípio, este blog foi mais um ímpeto do que outra coisa. Considerava-o um exercício do meu senso crítico, que poderia ser colocado em prática se algum dia eu viesse a fazer filmes eu mesmo. Mas a vida atrapalhou a iniciativa e eu acabei entrando em um daqueles hiatos.

Hoje, felizmente, a vida parece ter dado um tempo, e como eu não tenho muita coisa melhor pra fazer, pretendo continuar a escrever resenhas para quaisquer filmes que eu assistir. Devido à grande lacuna entre a minha última resenha e o dia de hoje, os textos não mais se referirão a filmes que acabaram de ser lançados em DVD/BluRay ou no cinema, e sim a quaisquer lançamentos de quaisquer épocas (há uma infinidade de filmes dos últimos 14 anos me aguardando na prateleira, e eu pretendo ver pelo menos a maioria). Lançamentos, no geral, serão priorizados, mas não exclusivos.

Dito isso, me sinto na obrigação de redigir opiniões mais ou menos curtas sobre cinco dos seis filmes que eu assisti mais recentemente (o sexto ganhará um texto à parte). Eles são:

In the Loop, de Armando Ianucci (In the Loop, Inglaterra, 2009. Comédia.). Jamais conseguirei entender os critérios das distribuidoras daqui. Apesar de In the Loop ser, por cima, um filme difícil de entender para os brasileiros, é, no fundo, uma das produções inglesas mais universais lançadas nos últimos anos; na verdade, é acima de tudo um filme anti-guerra, sem dúvida um dos melhores já lançados sobre a Guerra do Iraque. E, apesar disso, não chegou sequer a ter um lançamento em DVD no Brasil. A história, que de tão crua e orgânica nem vale a pena ser resumida com muitos detalhes, é a de como uma série de erros e gafes públicas de secretários e generais dos governos dos EUA e da Inglaterra teriam levado ao início do conflito no Oriente Médio. Mas o espectro do filme vai em várias outras direções, chegando por vezes a assumir a dimensão de um atestado sofisticado do relacionamento entre o governo e o povo. Completamente verossímil tanto em seu roteiro (escrito por quatro pessoas a partir de um seriado cômico inglês da autoria do próprio diretor) quanto na abordagem de Ianucci, que consegue manter um ritmo incrivelmente vívido apesar do estilo "pseudo-documentário" que (corretamente) adota, In the Loop ainda tem o apoio de um grande elenco que contribui para torná-lo consistentemente hilário (Peter Capaldi rouba a cena por estar mais estourado, mas o trabalho difícil de atores como Tom Hollander é igualmente meritório e ambos mereciam indicações ao Oscar). É, por vezes, um filme assustador — e não porque escancara os horrores da guerra, mas porque nos dá uma ideia de quem são as autoridades por trás desses horrores.

Uma Vida Melhor, de Chris Weitz (A Better Life, EUA, 2011. Drama.). Lançado apenas em DVD no Brasil, este Uma Vida Melhor chamou alguma atenção no começo do ano pela indicação-surpresa do mexicano Demián Bichir ao Oscar de Melhor Ator (desbancando Leonardo DiCaprio em J. Edgar). Sexto trabalho diretorial de Chris Weitz, cujo currículo é um dos mais diversos que já vi, indo do primeiro American Pie a A Saga Crepúsculo: Lua Nova e passando por Um Grande Garoto e A Bússola de Ouro, esse relato da experiência de um imigrante ilegal e seu filho em Los Angeles é, certamente, um dos filmes mais maduros do cineasta — e, não obstante, uma produção esquecível. Pra falar do elefante na sala — a atuação de Bichir, obviamente —, não é difícil admitir que ele surpreende no papel, acabando por se revelar melhor do que o filme, que, apesar de resvalar em temas relevantes e fazer um retrato realista da vida dos imigrantes, não atinge a complexidade e as nuances que ressoam na performance contida de seu protagonista. A trama, para começar, sempre parece estar a serviço da proposta, o que diminui a força dos personagens e da própria mensagem do filme, além de tornar seu ritmo inconsistente. Os personagens secundários são apresentados de maneira confusa e desleixada, além de muitas vezes serem incapazes de ir além dos estereótipos (o melhor amigo do filho do principal é uma não-presença). E Weitz comete alguns tropeços inexplicáveis que expõem sua relativa inexperiência atrás das câmeras, como incluir um plano final completamente desnecessário dando um rápido vislumbre da vida de um personagem após seu destino. Apesar dessas falhas "técnicas", porém, o texto de Uma Vida Melhor consegue, na maior parte do tempo, ser humano e reverberante em sua exposição da realidade na qual seus personagens vivem — e assim o mérito das cenas mais instigantes (como aquela em que Luis pergunta ao pai "Por que todas essas pessoas pobres têm filhos?") vai quase todo para os roteiristas.

Meia-Noite em Paris, de Woody Allen (Midnight in Paris, EUA, 2011. Romance/Comédia/Fantasia.). É cada vez mais difícil encontrar filmes que proponham discussões ambiciosas sem recair em abordagens dramáticas ou até mesmo depressivas. A filmografia de Woody Allen tem a qualidade de entrar muitas vezes nessa categoria de filmes "leves, mas profundos", e Meia-Noite em Paris é um exemplo ótimo. Aproveitando a persona amigável do subestimado Owen Wilson como o Woody Allen da vez (no caso, Woody "Gil, o Roteirista" Allen), o filme consegue ser ao mesmo tempo um espelho crítico da sociedade e um tratado contra o cinismo. Allen está em grande forma atrás das câmeras, brincando com as expectativas do espectador sempre que pode e ressaltando através de sua direção arrojada tudo o que não é inteiramente expresso pelo excelente roteiro, pelo qual ele ganhou um Oscar (que não foi receber, em um ato costumeiro que sempre admirei nele). Além da ideia mais "clara" que o filme atesta — a de que viver no passado é besteira —, há ainda uma série de outras agulhadas dissolvidas na história aparentemente doce de um homem pacato e sonhador que tem a oportunidade insólita de visitar a Paris dos anos 20. O elenco ajuda — tanto Michael Sheen quanto Rachel McAdams estão admiravelmente detestáveis, e Corey Stoll rouba a cena em suas curtas aparições — assim como as belas locações e a fotografia aconchegante. E é maravilhoso ver um cineasta experiente como Allen em ação, amarrando as pontas da estrutura complexa do filme de forma absolutamente admirável no desfecho. Uma produção leve e adorável para qualquer idade — embora provavelmente chata para os muito novos —, Meia-Noite em Paris poderia ser visto pelos fãs mais cínicos do diretor como um trabalho trivial em comparação com obras como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan. Mas, como o próprio Allen ressalta aqui, nostalgia demais não vale a pena.

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, de Michel Gondry (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, EUA, 2004. Romance/Drama/Sci-Fi.). Às vezes, eu me sinto sinceramente envergonhado de ter assistido a tão poucos filmes escritos por Charlie Kaufman. Além deste, que à época fora considerado seu magnum opus, tendo inclusive lhe rendido seu único Oscar, assisti apenas ao relativamente recente Sinédoque, Nova York. Se esses dois filmes valem alguma coisa, acho que dá pra falar que todo o hype em torno do roteirista Kaufman (também "autor" de Quero Ser John Malkovich e Adaptação) é absolutamente justo. Brilho Eterno... já é praticamente um clássico, então eu não tenho muito mais para falar a seu respeito do que o que já foi dito, mas o que eu posso falar é que qualquer um que não viu esse filme ainda (ou tentou ver e dormiu, o que aconteceu com muita gente) está fazendo a si mesmo um desserviço. Esse drama romântico maluco, pioneiro em retratar as alegrias e as decepções do amor moderno com franqueza (algo que muitos romances passariam a fazer também, um dos casos mais famosos sendo o do ótimo (500) Dias com Ela), é uma daquelas epítomes da linguagem cinematográfica que surgem de tempos em tempos para nos mostrar para que (e do que) o cinema é feito. Criando simbolismos e metáforas dignos de David Lynch e com a profundidade temática de um filme de Francis Coppola ao ambientar o filme quase todo na mente do protagonista, Kaufman e o também visionário diretor francês Michel Gondry (cuja mão inventiva sempre se faz sentir apesar do quanto o roteiro de Kaufman se impõe) fizeram uma obra-prima simultaneamente tocante e assombrosa, com uma complexidade estrutural que poucas vezes teve paralelos e um rigor psicológico impressionante na construção de seus personagens, subvertendo convenções a todo momento e jamais deixando algo ficar solto na narrativa sem que haja um propósito temático específico. Além disso tudo, é claro, todos os atores do filme registram aqui atuações que figuram entre as melhores de suas soberbas carreiras (Jim Carrey em particular). Na superfície, Brilho Eterno... é um filme sobre um relacionamento romântico. Mas, na soma de suas partes, é um filme sobre todos os relacionamentos românticos, e os fatores bons, ruins ou péssimos que os cercam.

Moonrise Kingdom, de Wes Anderson (Moonrise Kingdom, EUA, 2012. Dramédia/Romance.). Eu realmente gostaria de dar cinco estrelas a Moonrise Kingdom — mas não posso, porque embora seja praticamente desprovido de falhas, ainda é um filme que só faz sentido conceitual no contexto de sua produção: sem saber que se trata de um marco na evolução humana dos trabalhos do cultuado Wes Anderson, fica difícil levar esse filme a sério como algo mais do que uma ode à inocência e à eventual perda dela. Na verdade, o olhar de Anderson sobre as pessoas e seus erros, durante quase todo o filme, é apenas observacional, privando o conjunto da profundidade analítica de alguns de seus trabalhos anteriores. Ainda assim, o delicioso senso estético de Anderson e o imenso respeito que este tem por seus personagens se fazem sentir a todo momento em Moonrise Kingdom, que consegue ser ainda mais caloroso, emocional e envolvente do que o excepcional O Fantástico Sr. Raposo (a segunda melhor produção animada no melhor ano da história recente da animação). Pra começar, a escolha dos dois jovens atores estreantes que encabeçam o elenco estrelado é perfeita. Jared Gilman e Kara Hawyard conseguem fazer frente às atuações memoráveis de veteranos como Bruce Willis e Frances McDormand, além de exibirem bem mais química do que a maioria dos casais de comédias românticas — assim tornando a cena da fuga dos dois entre o primeiro e o segundo ato um momento inesquecível por sua organicidade. O filme todo, na verdade, é recheado de bons momentos, inclusive uma série de analogias inteligentes, visuais e sonoras, que servem para definir os complexos personagens e suas motivações e inseguranças. Pontuando com precisão a também antológica sequência da tempestade, a trilha de Alexandre Desplat é ao mesmo tempo aconchegante e climática, e o mesmo pode ser dito do trabalho minucioso dos diretores de arte. No todo, porém, esse é um triunfo de Anderson, que consegue imprimir seu estilo ao filme ao mesmo tempo em que cria uma obra emocionante capaz de tocar a todos.