quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Resenha 10: "Valente", de Mark Andrews e Brenda Chapman

Merida (Kelly Macdonald), Lorde Macintosh (Craig Ferguson) e seu filho, Lorde Dingwall (Robbie Coltrane) e seu filho, Lorde MacGuffin (Kevin McKidd) e seu filho, Elinor (Emma Thompson) e Fergus (Billy Connolly) em Valente. © Disney.
Brave, EUA, 2012. Animação/Fantasia/Família/Aventura/Dramédia. 94 minutos. Direção: Mark Andrews e Brenda Chapman. Escrito por: Brenda Chapman, Mark Andrews, Steve Purcell e Irene Mecchi. Elenco: Kelly Macdonald, Emma Thompson, Billy Connolly, Julie Walters, Robbie Coltrane, Kevin McKidd, Craig Ferguson. Classificação indicativa: Livre.

Antes de mais nada, acho correto esclarecer, pelo bem da integridade jornalística (há há), que eu, assim como boa parte da população, sou fã incondicional da Pixar e de praticamente tudo o que eles fizeram até Carros 2 (que não é um filme ruim, mas tampouco é bom o suficiente). Acho difícil isso turvar o meu julgamento, mas já aviso para evitar posteriores desconfortos.

Na verdade, para grande parte dos críticos o fato de um filme ser da Pixar já o coloca em posição delicada, visto que espera-se dele automaticamente que faça jus ao nível absurdamente alto que foi estabelecido e mantido pelo estúdio ao longo dos anos. Carros 2 foi uma vítima dessas expectativas muito altas, e Valente tem sido. Inicialmente, ao assistir o filme nos cinemas e com a distraidora dublagem em português (que vitimou até mesmo as antes belas canções interpretadas por Julie Fowlis), eu me esforcei mais do que gostaria para apreciá-lo, por motivos que já explicarei. Com o tempo, porém, a sutileza do filme cresceu em mim, e, ao revê-lo em DVD nessa semana de lançamento, eu realmente tive uma experiência diferente, e em muito melhorada.

Pra começar, o trabalho vocal do elenco original é excelente; apesar de ter custado um pouquinho a me acostumar aos sotaques escoceses, eu não demorei pra me surpreender com a vivacidade que Kelly Macdonald — uma atriz desconhecida no Brasil, mas que tem algum reconhecimento nos EUA como um talento subvalorizado graças a atuações como as em Onde os Fracos Não Têm Vez e na série Boardwalk Empire — dá à protagonista Merida, o que não é pouco considerando que a escocesa teve o imenso desafio de ser a primeira "atriz principal" da história da Pixar. A experiente Emma Thompson é igualmente notável em sua performance impactante e matizada como a rainha Elinor, e o elenco de apoio, por assim dizer, é bem-sucedido na tarefa de dar alívio cômico ao filme — Billy Connolly, em particular, consegue transitar formidavelmente entre a caricatura ruidosa e o desespero que toma conta de seu personagem no terceiro ato.

E o filme, em si, cumpriu com minhas suspeitas e revelou-se muito mais profundo e emocional da segunda vez. Após uma abertura eficiente que nos apresenta aos personagens de forma dinâmica e convence ao retratar o sufoco de Merida em meio à sua rotina aristocrática imposta por Elinor — sequência esta que ainda serve como uma desconstrução curiosa do tipo "princesa Disney" que Merida repudia —, o filme não demora em nos apresentar ao seu conflito principal: o casamento arranjado que se enuncia sobre a pobre princesa ruiva, e que sua mãe insiste ser importante para a manutenção da paz do reino. Após uma sequência brilhante que ilustra com precisão a falta de comunicação entre mãe e filha e a dificuldade que as duas têm de enxergar o lado da outra (não darei detalhes para não estragar o impacto, já que o filme tem menos momentos geniais do que a maioria das produções da Pixar), os três lordes cujos filhos competirão pela mão da princesa chegam ao castelo, e, previsivelmente, é um pretendente pior que o outro.

Ao longo de todo esse primeiro ato, pipocam diálogos e cenas que ecoarão pelo resto do filme para pontuar a jornada pessoal de Merida e Elinor, em uma jogada esperta dos realizadores. Além disso, é admirável a forma como a aura de comemoração da chegada dos lordes é rapidamente quebrada e transmutada em tensão absoluta graças às ações/reações de Merida e Elinor, que mostram-se completamente orgânicas e até mesmo relacionáveis, tanto para filhas quanto para mães (e o efeito dramático da sequência é potencializado novamente pelas atuações de Macdonald e Thompson). Assim, a narrativa é logo atirada em um sufoco momentâneo que serve para dar origem à principal reviravolta da história — e isso tudo é feito enquanto a relação delicada entre as duas protagonistas vai sendo hábil e comoventemente desenhada.

A partir da metade do filme, o foco muda bastante, e começa uma prolongada seção narrativa que acompanha o desenvolvimento de Merida e Elinor enquanto elas aprendem a ouvir mais uma à outra — é tanto mais louvável que o roteiro consiga manter essa transição crível e envolvente mesmo com uma barreira enorme de comunicação colocada por ele entre as duas. Assim, sem demorar muito, Valente se torna algo que boa parte da crítica não pôde enxergar: um estudo psicologicamente astuto da relação entre mães e filhas (ou pais e filhos de modo geral), e ao mesmo tempo um incitador de discussões sobre a necessidade de equilibrar as tradições/convenções e a quebra destas. Isso tudo é feito de forma sutil e tocante, através de metáforas inteligentes como aquela em que a protagonista, que durante toda a produção se manteve adversa às tradições femininas, entrega-se à costura de uma tapeçaria por imaginar que isso salvará sua mãe, apenas para descobrir que esta talvez não seja a solução, e cenas emotivas como um flashback que mostra a devoção amorosa de Elinor a uma Merida de colo, o que, pelo que já sabemos do enredo, coloca ainda mais em jogo para a princesa. Por várias vezes, cenas que até então aparentavam ser oportunidades perdidas ou mesmo momentos descartáveis mudam de significado com o desenvolvimento da trama, comprovando a inteligência dos roteiristas. E a tensão é construída com cuidado ao longo dos dois últimos atos, levando a um clímax emocionante que coloca todos os personagens principais em situações de completo "terror adulto" (o que é ainda mais evidente nas reações do até então divertido e despreocupado pai de Merida), mostrando que a Pixar ainda sabe como mexer com os corações de mães e pais.

Normalmente, toda essa construção psicológica/filosófica cuidadosa (que se revela uma das mais sombrias e maduras da história da Pixar) e a forma competente como ela é conduzida pelos diretores, somadas ao costumeiro preciosismo do estúdio no que diz respeito aos visuais — os cenários espetaculares e o incrível cabelo de Merida seguramente tornam este filme um dos maiores feitos da história da computação gráfica no cinema —, seriam suficientes para garantir a essa 13ª produção do estúdio de Emeryville o status de clássico instantâneo facilmente alcançado por muitos de seus antecessores. Mas Valente perde uma estrela por ter persistentes e pronunciados problemas de ritmo — e isso não é culpa dos montadores, e sim da própria construção da história, que sofre por depender demais de um grupo de personagens reduzido que rapidamente se torna sufocante por sua repetitividade (não me refiro à inesquecível dupla de protagonistas, e sim a personagens coadjuvantes como os lordes e os irmãos de Merida). Além disso, o filme peca por apressar-se demais na resolução do conflito entre Merida e Elinor, e embora esta seja feita com exatidão psicológica absoluta, a sensação dada pela decisão de passar todo o segundo ato em apenas algumas horas não é tanto a de uma urgência incontornável, como queriam os realizadores, quanto a de uma excelente oportunidade perdida de ir mais a fundo na análise das relações mãe/filha — é só comparar este filme com Procurando Nemo, por exemplo, e fica claro que o âmbito de sua história é bem menos ambicioso e interessante. Ainda assim, Valente é uma produção importante — Merida é a primeira "princesa da Disney" a não ter ou depender de um príncipe, o que revela a preocupação da Pixar em dar às meninas um modelo de comportamento mais atual — e que funciona muito bem, na maior parte do tempo, como entretenimento tocante e inteligente, além de passar uma série de mensagens ótimas para filhas/filhos e mães/pais. E, se isso não é suficiente para igualá-lo às obras-primas que a Pixar já mostrou-se capaz de fazer, ainda é mais que o bastante para permiti-lo integrar a filmografia do estúdio sem passar vergonha.


Classificação final:

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