terça-feira, 20 de novembro de 2012

I don't know what the hell a third act is

A minha vontade, sinceramente, era escrever um texto hiper-meta com camadas e camadas de neurose que se confundiriam no meu espectro criativo e naquele do meu objeto de discurso, completando e não completando uma estrutura intangível e esmagadora de bonecas russas que derramariam diante de mim todos os meus medos, alegrias, decepções e paixões cortadas prematuramente pela minha obrigação com o mundo ou alguém dele, mesmo sem eu ter jamais me conhecido completamente, e as bonecas surtiriam o mesmo efeito em todas as pessoas do mundo que se dispusessem a não voltar sua atenção aos meus oponentes conceituais — usar "conceitual" nas coisas é tão pedante, meu Deus — porque eu conheceria a fundo os medos, alegrias, decepções e paixões cortadas prematuramente de todo mundo mesmo eu sendo uma personificação do Pinguim Socialmente Deslocado que chega a um nível de auto-desprezo tão estupidamente grande que me faz capaz de produzir um, dois, vários textos mostrando a todos o quanto eu sou ridículo e patético e insignificante, mesmo eu sabendo que textos como esses me tornariam propenso às críticas daqueles que já me achassem pretensioso demais para o meu próprio bem — mas eu iria em frente, assim que conseguisse o apoio prático e logístico de que eu precisasse, e me submeteria às críticas e ao fato incontornável de não ser eu a colher os louros se tudo desse certo no final, porque eu seria um artista, por mais que isso me fizesse mal, e mesmo que isso me tornasse miserável eu poderia relativizar o meu sofrimento com um novo texto que expusesse a decepção a que todos os seres humanos se submetem todo dia. A minha vontade era essa porque só assim eu conseguiria escrever um texto-homenagem à altura de Charlie Kaufman.

Se você não sabe (e eu já aviso que abandonei completamente qualquer ambição de tornar esse texto estruturalmente interessante, porque qualquer tentativa que eu fizesse empalideceria diante da obra do meu objeto de discurso), Charlie Kaufman é um nova-iorquino baixinho e neurótico que evita a todo custo aparecer na televisão e não é particularmente afeito a entrevistas, apesar de estar imerso desde os anos 90 na indústria cinematográfica e ser o roteirista de obras-primas modernas como Adaptação e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.

Interpretado no cinema por Nicolas Cage.
Kaufman era um leitor ávido na infância, e se mudou do estado de Nova York para uma cidade média em Conneticut logo antes de inciar o colegial, onde teve sucesso como ator em peças escolares. Acabou indo fazer cinema na New York University, vindo a se tornar empregado no departamento de entregas de um jornal em Minneapolis antes de tornar um roteirista de TV contratado em Los Angeles no início dos anos 90. Finalmente, após resistir a vários "não"s de executivos, ele conseguiu que o seu roteiro Quero Ser John Malkovich fosse lido por Francis Ford Coppola, e o então genro deste, Spike Jonze, acabou dirigindo o filme, que se tornou um enorme sucesso de crítica e teve lucro suficiente para impulsionar as carreiras do diretor e de Kaufman.

Hoje, após ter sido indicado ao Oscar três vezes como roteirista e vencido uma, e gozando de maior prestígio entre a crítica do que qualquer outro de sua geração, Charlie Kaufman está trabalhando em uma animação em stop-motion financiada com doações, e se esforça para conseguir inciar a produção de seu mais novo projeto de longa, que está na geladeira há anos embora haja um roteiro pronto em circulação e um elenco disposto a começar a filmar.

Não é por qualquer razão que esse agora também diretor (vide seu incompreendido Sinédoque, Nova York) é considerado o roteirista mais brilhante em atividade. Jamais temendo em ir além das fórmulas e conseguindo sempre criar projetos que, apesar de em muito pessoais, são capazes de dialogar com as emoções de qualquer pessoa, Charlie Kaufman é um mindfucker nato, mas também um artista humano, que mistura Woody Allen e David Lynch em todos os seus projetos mas consegue estabelecer sua própria marca neles, e isso tudo apesar de nem sequer dirigir a grande maioria de seus filmes.

Mas esse feito é possível, talvez, porque o grande fio que une todos os filmes escritos por Kaufman é a sua temática, que trata sempre do funcionamento da mente, e de como as emoções interferem com esse funcionamento. Veja bem: em Quero Ser John Malkovich, Kaufman cria uma metáfora bizarra para a vontade que muitos sentem de ser outra pessoa, e utiliza a imagem de marionetes para representar o contraste entre a necessidade de estar no controle e o impulso natural de ser controlado presentes em todo ser humano. Em Adaptação, faz um estudo metalinguístico da obsessão por fórmulas da sociedade e do efeito dessa obsessão sobre o processo criativo, seja do artista ou de qualquer outra pessoa, além de apontar o vazio e a ilusão que se escondem nas paixões mais profundas. Em Brilho Eterno..., observa o amor, a sua formação, sua natureza e seus efeitos colaterais existentes diretamente na mente das pessoas. E em Sinédoque, NY, ele faz uma omelete com todas as mágoas e injustiças incontornáveis intrínsecos à existência humana a partir dos esforços criativos de um autor tão egocêntrico que só é capaz de consumir sua vida trabalhando em uma obra de arte sobre ele mesmo consumindo sua vida trabalhando em uma obra de arte sobre sua vida.

É necessária uma ousadia tão grande, e um impulso artístico tão nobre, para fazer filmes com temas com essa profundidade e permeá-los com labirintos de complexidade capaz de afugentar a imensa maioria das pessoas que veem filmes, que Kaufman mereceria méritos mesmo que seus roteiros não fossem lá muito bons — mas eles são, e não só porque têm o dom raro de quase entender realmente como é e funciona o ser humano, mas porque são, invariavelmente, tão metafísicos, metalinguísticos, conscientes de si mesmos, abrangentes, antiformulaicos e auto-depreciativos que, mesmo em seus momentos de menor grandeza, somos obrigados a acreditar que tudo o que está neles, de bom ou de ruim, é inteiramente intencional e tem um propósito artístico que não somos capazes de enxergar — como se, lá de sua casa em Pasadena, Kaufman estivesse nos vendo, rindo e dizendo "Vocês não entendem nada. Jamais entenderão".

Um projeto tão independente que foi financiado com doações.
Hoje, eu me arrependo de ter escrito uma mini-resenha para Brilho Eterno..., porque os filmes escritos por Kaufman, todos os que vi até agora (4 de 6, ou "os essenciais"), estão acima da avaliação comum; não estão sujeitos ao mesmo tipo de provação técnica que é dada a outros filmes de alto nível como, digamos, A Rede Social. Não tenho nenhuma reserva em relação ao filme de David Fincher (que considero um dos mais memoráveis dos últimos anos), mas é completamente possível avaliá-lo como um trabalho "normal", que não se preocupa demais em fugir radicalmente de padrões ou transmitir sua mensagem enquanto faz pouco caso das expectativas da audiência, como é de praxe nas produções escritas por Kaufman. Como se pode avaliar um filme como Adaptação de forma normal, quando o próprio filme afirma, explicitamente, que tudo o que geralmente procuramos observar e gostar/não gostar em produções hollywoodianas é besteira pura? Como julgar o progresso da trama de Sinédoque, Nova York se o objetivo do filme é fazer um retrato quase surrealista da angústia? Filmes como os de Kaufman desafiam o expectador a deixar todas as suas pré-concepções na porta da sala de projeção; muitas vezes, eles requerem que os vejamos múltiplas vezes para compreender tudo o que querem nos dizer do alto de sua ambição quase épica.

Kaufman, em anos recentes, foi responsável por elevar o roteirista a uma posição de "autor" do filme que, muitas vezes, sobrepuja a do próprio diretor; se é certo que filmes como Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno... perderiam grande parte de seu impacto sem a condução audaciosa de Spike Jonze ou Michel Gondry, eles serão lembrados na história como êxitos de Kaufman; hoje, ele é visto como a principal mente criativa por trás de todos os seus projetos (menos Confissões de Uma Mente Perigosa, cujo roteiro foi substancialmente atropelado pelo diretor George Clooney) e se espera dele, ansiosamente, que surja logo outro brain teaser para nos dar iluminação em meio ao marasmo criativo de Hollywood (não que não hajam cineastas ambiciosos e criativos em atividade, é só que não há suficientes). Por isso, todo roteirista deveria ser ainda mais grato a ele — "ainda mais" porque Kaufman decerto forneceu inspiração para muitos, muitos dos que vieram depois dele.

Ontem, 19 de novembro de 2012, foi o aniversário de 54 anos de Charlie Kaufman. (Foi também o aniversário de Jodie Foster, Allison Janney e Meg Ryan, diga-se. Que dia.) Eu espero que ele continue por muitos anos de vida a nos tocar e fazer pensar com seus brilhantes trabalhos — só foram quatro "essenciais" até agora, o que não é nem de longe suficiente para compor uma grande filmografia, e ao mesmo tempo mostra a capacidade de Kaufman de dizer muito com pouco. Agora que ele também dirige seus projetos, então, pode-se esperar que sua visão artística seja ainda mais realizada em seus filmes. Por essas e outras, espero ansiosamente que alguém se disponha logo a financiar Frank or Francis, o tal projeto na geladeira — e o fato de ele ser anunciado como um musical farsesco satirizando a temporada de premiações e os críticos de cinema virtuais torna minhas expectativas ainda maiores. Como já se provou, um ótimo conceito + Charlie Kaufman é garantia quase infalível de uma obra-prima.

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