sábado, 24 de novembro de 2012

Casting pra quê?

"Unfortunately, the joke is bullshit."

O casting é uma tarefa difícil. Além de serem encarregados de coordenar todos os detalhes comerciais da contratação de atores, os diretores de elenco devem ter um conhecimento amplo do "mercado de atores" e conhecer as limitações, os fortes e até as preferências pessoais de suas "opções". Precisam conseguir encontrar atores que sejam competentes, compatíveis com os personagens, apropriados à visão do diretor e, acima de tudo, disponíveis. Em muitos filmes, isso é um desafio enorme.

Em filmes de animação, porém, aparenta ser um trabalho relativamente descomplicado: basta encontrar qualquer estrela (não precisa nem ser um ator ou atriz; basta estar no showbiz) que esteja com um espacinho na agenda, dá-la milhões de dólares para entrar no projeto e repetir o procedimento até ter uma lista de uns três ou quatro A-listers com nome suficiente para atrair pessoas para o cinema. Se o número de personagens do filme for grande, é só ir atrás de alguns ex-popstars que andam sumidos — eles não hesitarão em aceitar os papéis menores — ou convocar alguns comediantes ou "atores engraçados" jovens e populares (de preferência vindos da TV, a fim de diminuir os custos) para dar vida aos personagens mais malucos ou excêntricos, o que dará ao filme uma oportuna camada de interesse nerd. Ah, e é sempre bom convocar um "veterano" para dar um ar sério ao elenco — mas precisa também ser uma estrela, e não uma velha lenda nem nada disso.

Essa fórmula cansada e desrespeitosa com o público é repetida em virtualmente todas as produções animadas de estúdios grandes — menos as da Pixar, como explicarei — e por causa disso, animações são, hoje, o gênero cujos filmes têm em média os elencos mais estrelados. E, por mais que eu goste da ideia, é óbvio que essa tendência tem, na prática, motivações principalmente comerciais; esse tipo de casting formulaico e centrado apenas no star power deturpa a ideia principal do diretor de elenco, que é escolher o ator perfeito para cada papel.

E a pior parte disso é aquela a que se refere a legenda da imagem acima: os estúdios sempre fazem questão de esfregar na nossa cara que seus filmes têm superstars no elenco, não hesitando em fazer alarde em torno dos atores que contratam sempre que surge uma oportunidade. Portanto, a piada presente nesse pôster de A Origem dos Guardiões é contraditória ao que a DreamWorks (que produziu e distribui o filme) tem feito até agora: o barulho em cima do megaelenco composto por Chris Pine, Alec Baldwin, Hugh Jackman, Jude Law e Isla Fisher tem sido tão grande que o estúdio chegou ao cúmulo de inscrever seu filme na categoria "Melhor Elenco" do SAG Awards — uma atitude que apoio completamente, mas que aqui foi tomada antes mesmo de o filme estrear, sinalizando que os realizadores querem fazer você acreditar que reuniram o melhor elenco vocal de todos os tempos. Uma suposição baseada, novamente, no star power, e não no talento em si dos atores.

E a DreamWorks é especialista nisso. Todos os seus filmes em CGI, todos mesmo, se sujeitaram à formula supracitada. (Aqueles produzidos pela DreamWorks, e não os só distribuídos por ela, que fique claro.) Começando com Formiguinhaz em 1997 — uma produção que, por melhor que seja, foi, em sua concepção, um plágio confesso de Vida de Inseto —, que trazia em seu elenco Sharon Stone, Sylvester Stallone, Jennifer Lopez (!) e Woody Allen (!!). E, se os atores acabaram sendo elogiados (Allen em especial) e os demais papéis foram dados a veteranos respeitáveis como Danny Glover e Gene Hackman, isso foi mais, como a história provou, porque a DreamWorks ainda não tinha os meios para conseguir muitos atores de primeira. Tanto é que já na sua segunda produção, Shrek, o estúdio contratou Mike Myers, Cameron Diaz e Eddie Murphy para encabeçar o elenco — e teria ido mais longe (provavelmente deixando de lado atores como John Litgow e Vincent Cassel) se tivesse como, o que ficou claro quando, diante da necessidade de contratar um ator latino para fazer o Gato de Botas em Shrek 2, a DreamWorks escolheu simplesmente aquele que era, na época, o ator latino mais estelar do mundo: Antonio Banderas.

Mais discreto impossível.
O cúmulo, porém, veio em 2004, com O Espanta Tubarões — basta olhar para a imagem ao lado para ver qual foi a estratégia da DreamWorks na divulgação. (E o pôster nem menciona as participações de Ziggy Marley e Christina Aguilera.) Foi esse filme que começou, efetivamente, a onda do casting comercial em animações, um padrão que todos os filmes subsequentes da DreamWorks, e também todos os outros filmes de animação com grande distribuição, seguiriam. (E por isso, mesmo jamais tendo assistido a O Espanta Tubarões, ele está na minha lista negra cinematográfica.) Mesmo na ponta do lápis, é quase impossível escapar um sequer — exceção feita, inexplicavelmente, a algumas produções internas da Disney, como A Família do Futuro e A Princesa e o Sapo, o que é irônico tendo em vista que o estúdio foi pioneiro na escalação de estrelas para elencos vocais (vide Robin Williams em Alladin).

Há uma contracorrente, porém, que fica evidente no principal adversário de O Espanta Tubarões à sua época de lançamento: o já clássico Procurando Nemo, da (claro) Pixar — que, como afirmei anteriormente, é o único estúdio grande a resistir a essa tendência. (E como poderia ser outro?) Sim, é possível argumentar que Procurando Nemo cedeu um pouco à febre ao convocar Ellen DeGeneres para fazer Dory. Mas assista o filme em inglês e verá que qualquer outra atriz no mundo seria errada. Qualquer outra. (Katharine Hepburn seria errada.) Além disso, reza a lenda que Andrew Stanton pensou em DeGeneres no meio da produção do filme e reescreveu o personagem especificamente para ela, então há um fundo de nobreza na decisão. Mas eis o restante do elenco de Procurando Nemo: Albert Brooks, Willem Dafoe, Geoffrey Rush, Allison Janney, Brad Garrett. Desses, apenas Garrett poderia ser visto como uma escolha oportuna — mas ele já estava com a Pixar desde 1997, quando Everybody Loves Raymond ainda era só uma criança. Todos os outros são veteranos altamente respeitáveis, e muitos poderiam ser vistos como escolhas até arriscadas, dado o público-alvo (eu mesmo não conhecia Brooks até o ano passado). Ah, e mencionei que há uma participação especial no filme? Se você pensou em uma superestrela como Brad Pitt ou Johnny Depp, errou: quem aparece de surpresa é Eric Bana, em começo de carreira cinematográfica e dividindo a tela com outros dois atores desconhecidos. E isso tudo apesar de a Pixar já ter se firmado, a essa altura, como um estúdio de imenso prestígio.

Sem contar a escalação de Tom Hanks e Tim Allen para Toy Story (o que é perdoável, considerando o quanto os personagens se tornaram emblemáticos na carreira dos dois), esse respeito pela qualidade do elenco em detrimento do star power sempre foi característico da Pixar: em Vida de Inseto, apesar do imenso sucesso de Toy Story, o pouco conhecido mas elogiado ator/roteirista de TV Dave Foley foi convocado para fazer Flik, e embora o elenco de personagens do filme fosse grande e diverso, os demais atores não eram comediantes com apelo pop ou estrelas fora de circulação, e sim veteranos como David Hyde Pierce, Richard Kind, Phyllis Diller, Madeline Kahn e — atenção — Kevin Spacey. (Curiosamente, havia também no elenco a mirim Hayden Panettiere, que chegaria ao semi-estrelato muitos anos depois, em Heroes.) Em Monstros S.A., o cuidado se repetiu: além de John Goodman e Billy Crystal, perfeitos nos papéis principais, havia ainda no elenco, em casting irretocável, Steve Buscemi e James Coburn — sim, James Coburn (1928-2002), que embora fosse um veteranaço vencedor do Oscar, jamais teria vez em uma produção animada hoje, porque já tinha passado do auge. Em Os Incríveis, Craig T. Nelson e Holly Hunter (vencedora do Oscar, mas longe de ser uma superstar) foram os eficientes protagonistas em um elenco cujo maior nome era Samuel L. Jackson (se você quiser criticar a escolha de Samuel L. Jackson, fique à vontade, mas eu não vou correr o risco). E em Carros, o casting foi inteligente ao contrapor sua única "estrela", o protagonista Owen Wilson, aos veteranos que interpretaram os carros da nostálgica Radiator Springs, como George Carlin, Paul Dooley, Katherine Helmond, Cheech Martin, Tony Shalhoub e PAUL NEWMAN. (Que outro estúdio daria um papel principal a Paul Newman àquela altura?) Além disso, para fazer Sally, a Pixar não escalou uma estrela jovem como Owen Wilson (o que qualquer outro estúdio faria), mas chamou novamente uma constante em seus filmes para dar a "experiência" necessária à personagem: Bonnie Hunt.

Isso nunca mudou. A Pixar já chegou ao ponto de não usar atores profissionais para os papéis principais, em WALL-E (que tinha participações de Jeff Garlin, Fred Willard e Sigourney Weaver, mas só), e fazer um filme protagonizado por dois atores rodados que o público jovem conhecia pouco, mas que mereciam todos os papéis que lhes fossem dados — Ed Asner e Christopher Plummer (anos antes do Oscar) em Up - Altas Aventuras. Recentemente, ao perder Reese Witherspoon (a escolha inicial para Merida, o que admito ter sido provavelmente uma decisão comercial) em Valente, a Pixar a substituiu por uma atriz escocesa subvalorizada, Kelly Macdonald, ao invés de ir atrás de outra estrela. Como se isso tudo não bastasse, o estúdio usou muito bem as oportunidades de acrescentar novos atores às suas cinesséries, incluindo em Toy Story 2 Joan Cusack e Kelsey Grammer, e em Toy Story 3 Ned Beatty e Michael Keaton. Enquanto isso, a Blue Sky acrescentou a A Era do Gelo 2 Queen Latifah, Josh Peck (de Drake & Josh) e Seann William Scott (o Stifler de American Pie), e a DreamWorks escalou Justin Timberlake para Shrek Terceiro. Percebe a diferença?

Acredite: é triste para mim dizer isso tudo. Eu gostaria muito que os outros estúdios de animação se esforçassem mais em trazer atores realmente bons, e não apenas estrelas em alta, para seus projetos. Mas isso ainda é longe de ser uma realidade. Para cada Dustin Hoffman ou Frances McDormand, para cada John Cleese ou Hugo Weaving, há cinquenta Taylor Swifts, Ashton Kutchers, America Ferreras, Tracy Morgans, P!nks, Adam Sandlers, Russell Brands, Roseanne Barrs, Chris Rocks, Miley Cyruses, Seth Rogens, Andy Sambergs, Will.i.ams, Martin Lawrences, George Lopezes, Will Ferrells, John Travoltas, Sacha Baron Cohens, Jackie Chans, Aziz Ansaris, Selena Gomezes e por aí vai. (Nada contra alguns desses atores, mas você entende onde quero chegar.) Isso, para mim, não é apenas um desrespeito à profissão do diretor de elenco; é um desrespeito ao próprio gênero animação, que acaba se tornando ainda mais um terreno puramente comercial e infantil ao ver da maioria das distribuidoras. Eu gostaria de viver em um mundo no qual todo filme de animação se prontificasse a concorrer a prêmios de Melhor Elenco — há um preconceito terrível contra atuações vocais em Hollywood —, mas o mundo em que vivemos é um no qual filmes como A Origem dos Guardiões só fazem isso pra chamar atenção para seu time de estrelas. E isso é sintomático de todo esse desrespeito.

Pior ainda: as companhias de dublagem brasileiras há muito aderiram ao padrão, nos forçando a engolir aqui e ali a performance dolorosa dos Luciano Hucks da vida (ver Enrolados). Sobre isso muita coisa já foi escrita, então só vou acrescentar que é uma oportunidade desperdiçada de elevar a tão elogiada indústria de dublagem brasileira a um patamar mais alto. Menos mau para os defensores do áudio original.

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